22 de jul. de 2013

Antropofagia

(Num ritual antropofágico, Barnabé é cercado por Deus Pedro primeiro, pelo coronel capitão Fleury Honório Cardoso, pelo padre João Almeida Couto, pelo rei do universo Willians Jones, pelo intelectual Joaquim de Alcântara, pelo juiz Getúlio Costa Vargas e pelo latifundiário Nero de Roma. Gritam no seu ouvido incessantemente).
NERO
- Analfabeto!
JOAQUIM
- Sem cultura!
GETÙLIO
- Sem conhecimento!
JOÂO
- Nunca leu Shakespeare!
WILLIANS
- Nunca fez literatura!
FLEURY
- Bárbaro! Selvagem! Escravo!
DEUS PEDRO
- Sem polis, sem àgora!
JOAQUIM
- Sem música clássica! Sem sonetos!
FLEURY
- Favelado!
GETÙLIO
- Sem Durkhein, sem ciência!
JOÂO
- Nunca vi um Dom Quixote em você, uma alma!
WILLIANS
- Não sabe escrever! Não sabe argumentar!
NERO
- Não sabe viver! Não tem riqueza!


FLEURY
- Pião! Servo!
DEUS PEDRO
- Mero miserável!
GETÚLIO
- Sem direito, sem jurisprudência!
WILLIANS
- Sem comida!
JOAQUIM
- Não sabe cantar nem pintar!
JOÃO
- Nunca teve um Michelangelo!
NERO
- Subdesenvolvido!
WILLIANS
- Terceiro mundo!
FLEURY
- Índio, negro, imundo!
DEUS PEDRO
- Garoto de rua!
JOAQUIM
- Burro!
NERO
-Bandido!
JOÃO
- Inferior!
DEUS PEDRO
- Sem escultura, sem barroco!
FLEURY
- Indigente!
NERO
- Mão de obra barata!
JOAQUIM
- Vagabundo iletrado!
(Barnabé ergue-se do chão donde era massacrado ao som de uma percussão violenta. Numa dança frenética ele come e bebe os aparatos dos opressores. Estes ficam incomodados e sentem-se acuados).

BARNABÈ
- Antropofagia marginal!
Comer! Ingerir! Devorar! Digerir!
Abocanhar Cervantes!
Mastigar Kant!
Coloque a poesia no prato!
Vamos engolir Mozart!
Comer!
Byron está no estômago!
Digestão de Picasso!
Comam na senzala,
Na esquina, no naufrago do navio negreiro!
Comam no chão da fábrica,
Nas enxadas, nos campos!
Nos canaviais!
Vamos cozinhar o cérebro de Shakespeare para o jantar!
Dividir o coração de Bocage!
Deliciam-se!
Só a antropofagia marginal nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
É só o que nos faz ser.
Contra todas as catequeses. E contra as mães dos Gracos.
Contra Colombo.
Esse que deve fechar a porta dos teus mares.
Nós éramos pelados.
Canibais da memória.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Caititi Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipejú
Vamos comê-los!
Contra todos os importadores da consciência enlatada.
O almoço de Hegel está pronto.
Por Victor Hugo como aperitivo
Antropofagia!
Do candomblé ao cacique!
Do cordel!
Antropofagia!
Contra Hollywood e guerras virtuais.
Comam Balzac!
Embaixo da ponte.
Só a antropofagia marginal nos une.
Nos becos e vielas.
Nas prisões.
No bueiro aberto.
Nos protestos.
No si do Hamlet vagabundo.
De Clarice a margem.
Antropofagia marginal.
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Antropofagia. Absorção do inimigo sacro.
Digerir!
Antropófagos.
Com um livro na senzala.
Com Portinari na marmita.

(Barnabé distribui pedaços de cultura enquanto o batuque violento mantém-se. O ritual antropofágico. Nesse instante, os opressores já desapareceram no prato de Barnabé).

Comer! Comer!
Não fenecer!
Reviver!
Ver!
Não crer!
Absorver!
Defecar!
Comer!
Perecer!
No entardecer!
Perceber!
Antropofagia Marginal!
Pela coragem do índio!
Pelo torpor do negro!
Em nome dos nordestinos.
Aos imigrantes operários.
Do palco do gueto.
Contra a elite parasitária.
Comamos a filosofia socrática no barraco de madeira.
Recitamos Ésquilo no chão de terra.
Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas.
O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema.
Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas.
E o esquecimento das conquistas interiores.
Sejamos antropófagos!
Desbravemos o que nos foi negado!
Inventemos! Enfrentemos!

Ah! Antropofagia.

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